No dia Mundial do/a Refugiado/a, o  CRESS Rio publica uma entrevista com a assistente social Samara Franco,  atuante na área de refúgio e pesquisadora do tema, Mestre em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pelo PPGSS UFF e Doutoranda em Serviço Social no PPGSS UERJ.

No ano em  que o jovem congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi cruelmente assassinado em um quiosque da Barra da Tijuca, no Rio, é  urgente conhecermos um pouco mais sobre o tema.

CRESS Rio – O que é o Programa de Apoio para a Recolocação dos Refugiados (PARR) ? Ele existe desde quanto e quantas pessoas foram impactadas positivamente por ele até hoje?

Samara Franco – O Programa de Apoio a Recolocação dos Refugiados é um projeto criado em 2011 pela empresa EMDOC (consultoria especializada em imigração, transferências para o exterior e realocação) com o apoio do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e em parceria com a Cáritas de São Paulo, e que busca recolocar refugiados e solicitantes de refúgio no mercado de trabalho brasileiro. O programa conta com uma plataforma onde é realizado o cadastramento de profissionais refugiados e, assim, os possíveis empregadores podem encontrar perfis de candidatos interessantes para a contratação em suas empresas.  Logo, nesse processo de intermediação dos candidatos e das vagas de trabalho, o eixo central do programa consiste em promover o estímulo à autossuficiência dessa população por meio de seu próprio trabalho. O programa visa sensibilizar a sociedade brasileira, sobretudo o empresariado nacional, destacando a capacidade que refugiados e solicitantes de refúgio têm de contribuir para a economia do país. Segundo o programa já foram mais de 3 mil pessoas impactadas pela atuação dessa iniciativa de apoio à população em situação de refúgio no Brasil.

 

CRESS Rio – Há um padrão, em termos de formação profissional entre os refugiados? Quais profissionais mais chegam através desse processo migratório?

Samara Franco -É importante pontuar de antemão que, o Brasil tem sido o destino de muitos refugiados, e o refúgio é um processo involuntário, no qual a pessoa é impelida a sair do seu território de origem em busca de proteção, pois o Estado não garante a sua integridade física. Dessa forma, considera-se que há diferentes grupos, com diferentes profissionais com qualificações acadêmicas e experiências laborais. Dentro dos estudos acerca do refúgio no Brasil, destaca-se que existe um perfil de pessoas que, em grande parte tinham uma carreira constituída no seu país de origem, e são graduados no ensino superior, no entanto, no Brasil esbarram na dificuldade em revalidar diplomas e certificados, para atuarem na sua área de formação e experiência. Além disso, encontram preconceito pela sua condição migratória e outros estigmas, e a falta de oportunidades. No trabalho com a população em situação de refúgio, verificamos nos atendimentos sociais, constantemente, pessoas altamente qualificadas, que eram professores, advogados, engenheiros, e enfermeiras no seu país de origem, porém no Brasil tentam se reinventar, pois não conseguiram se inserir no mercado de trabalho em sua área de formação e precisam garantir a sua subsistência e a de sua família.

 

CRESS Rio – Há diferença, no caso específico do Brasil, na acolhida de refugiados negros/negras? Quais os refugiados, de forma geral e no mercado de trabalho formal, sofrem maiores preconceitos e por quê?

Samara Franco -É oportuno destacar de antemão que, o refúgio é em grande parte visto de forma estigmatizada por aqueles que desconhecem tanto a natureza do deslocamento devido às guerras e aos conflitos territoriais, quanto a fuga de pessoas em situação de perseguições étnicas, culturais, religiosas e políticas. Sendo assim, o refugiado é, por muitas vezes, alvo de preconceito e discriminação por diferentes territórios e culturas. Isso é ainda mais agudo quando identificamos os processos estruturais da racialização que tem como alvo corpos negros e suas origens. Os problemas enfrentados pelo refugiado negro e africano vão desde conseguir um trabalho que valorize as suas qualificações profissionais e que seja seguro, com os direitos trabalhistas resguardados; até às condições de moradia.  Não se pode negar que, existe uma diferenciação no atendimento dessa pessoa em situação de refúgio e negra nos diferentes espaços dessa sociedade regida por um sistema racista que com requintes de crueldade explana a indiferença por corpos negros violados. Em muitos casos, eles relatam que nunca vivenciaram o racismo em seu país de origem e que acabam sendo surpreendidos quando descobrem que existe o racismo no Brasil ou por vezes uma suposta hierarquização étnico-racial cultural, justamente em um país que até então eles possuíam identidade e que acreditavam ser acolhedor.

 

CRESS Rio – Há uma diferenciação regional para este tipo de preconceito com imigrantes?

Samara Franco -O preconceito à população imigrante se torna ainda mais cruel quando o deslocamento é para os países europeus, onde se tem leis e políticas mais repressivas e punitivas, e que estimulam práticas discriminatórias escancaradas frente à chegada de refugiados e imigrantes nesses territórios. Assim, a discriminação racial e a xenofobia estão ainda mais presentes em países do centro do capitalismo que têm a perspectiva da não aceitação de determinadas populações, sobretudo de imigrantes negros africanos.

 

CRESS Rio – Como repercutiu o assassinato do jovem congolês Moïse Kabagambe  entre a comunidade internacional e entre os refugiados que se encontram no Brasil?

Samara Franco –  Esse crime bárbaro escancarou a xenofobia e o racismo estrutural que existem na sociedade brasileira, e que têm formas muito nefastas de atingir à população refugiada. O caso do assassinato brutal do jovem congolês Moise que foi cobrar um pagamento atrasado também revela a insegurança laboral que muitos refugiados estão submetidos.  A violência contra o jovem provocou um sentimento de dor e revolta na comunidade migrante. Muitos imigrantes, conterrâneos de Moise, revelaram o medo que sentem em terem as suas vidas ceifadas da mesma forma, através de atitudes que possam partir em diferentes lugares e momentos da sua estadia no Brasil. Esse é o medo real e constante na vida daqueles que estão em situação de refúgio e que se veem alvos de práticas discriminatórias devido ao seu status migratória e a cor de sua pele. Muitos atos denunciando o caso foram vistos no Brasil e no mundo, e tiveram o intuito de: expressar a indignação com esse crime brutal; dar voz para a questão das dificuldades enfrentadas pelos imigrantes no cotidiano; e para denunciar a xenofobia e o racismo praticados contra essa população.

 

CRESS Rio – Como é, oficialmente, a acolhida dos refugiados pelo poder público brasileiro, hoje? Antes era diferente? O que mudou?

Samara Franco – Quando falamos em acolhida pelo poder público da população refugiada no território brasileiro, isso está restrito à uma perspectiva mais burocrática, ou seja, de acesso à documentação. No que tange o acesso às políticas públicas já existentes e comuns aos brasileiros, verifica-se barreiras na garantia de direitos nos equipamentos públicos das políticas, como por exemplo a identificação da documentação dos refugiados e dos direitos que eles possuem. Além disso, no país não há políticas públicas amplas desenvolvidas especificamente para essa população. Posto isso, a atuação de real acolhimento aos refugiados no território brasileiro é realizada por organizações da sociedade civil que fazem um trabalho específico aos refugiados prestando assistências social, psicológica e jurídica, e outras ações que promovem a integração social neste território. Isso ocorre, apesar do governo brasileiro possuir uma legislação considerada avançada que é a Lei 9.474 de 1997, sendo uma das mais importantes, sobretudo na América Latina, referente à questão relativa ao refúgio. Ou seja, em contraface a lei moderna e progressista, no Brasil ainda não há uma política nacional específica no acolhimento ao refugiado, ficando a cargo de instituições não-governamentais o trabalho de acolhimento tão necessário àqueles que buscam recomeçar suas vidas em um novo local de morada.

 

CRESS Rio – Quais lições podemos tirar sobre o episódio que tirou a vida do congolês  Moïse ?

Samara Franco – Antes de tudo, este fato desmascara o mito da imagem de “Brasil, um país acolhedor aos refugiados”, escancarando a insegurança daqueles que buscam proteção nesse Estado e evidenciando as diversas violações de direitos que são perpetuadas no Brasil.  O caso do jovem congolês Moise trouxe para o centro da discussão a necessidade de políticas públicas e maior atenção à população refugiada que já se encontra em grande número no Brasil, para que tragédias como essa sejam evitadas. Sem dúvidas, fica claro, mais do que nunca, que reafirmar a defesa intransigente da democracia é fundamental, e sobretudo dos Direitos Humanos para todos e todas independente da nacionalidade, etnia e gênero, pois esse deve ser um compromisso assumido diariamente e em combate a barbárie capitalista.