Um dos vários retrocessos aprovados na gestão interina de Michel Temer é a nomeação de um coronel da Polícia Militar de São Paulo para a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas — SENAD, que coloca o Brasil na contramão das políticas adotadas sobre o tema em diversos países do mundo.


Reportagem por Filipe Olivieri

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“Eu acho que vamos voltar a idade das trevas”, diz o médico psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira sobre a nova composição da SENAD. Professor da Universidade Federal de São Paulo e consultor do Ministério da Saúde, Silveira foi fundador do PROAD (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes) na Unifesp e participou da elaboração do programa Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo.

A idade das trevas a que se refere começou na década de 70, quando o presidente dos Estados Unidos declarou a “Guerra às Drogas”, com medidas proibicionistas e uso das forças de repressão.

O resultado desastroso dessa política é gritante até hoje: mesmo com a liberação da maconha em quatro estados norteamericanos, 46% de toda a população carcerária do país responde por crimes relacionados às drogas. A estatística, de maio deste ano, é do Federal Bureau of Prisions, órgão responsável pela administração prisional dos Estados Unidos.

O professor Silveira ressalta que é a favor da liberação de todas as drogas “há 40 anos”, e diz que é impossível fazer prevenção em um cenário proibicionista. Conversamos com ele sobre os prejuízos do proibicionismo no tratamento da dependência química e suas perspectivas diante nas mudanças no novo governo.

Foto: Arquivo Pessoal

Como você enxerga a gestão da política sobre drogas nesse governo interino?

Vamos voltar a idade das trevas, como foi aqui durante muitos anos. Na ditadura militar, por exemplo, a CONFEN, mesma instância que a SENAD, era completamente voltada para a repressão e proibicionismo.

Esse é um modelo que já foi testado no mundo inteiro e considerado um grande fracasso. Não é a toa que o Uruguai legalizou a maconha, o Canadá está legalizando as drogas, vários estados americanos estão regulando a questão, na Europa muitos países já tem posturas progressistas com relação às drogas, ou seja, o mundo todo está mudando em cima de uma prática que não deu certo, e o Brasil está na contramão da história, reforçando um modelo ineficaz e desastroso.

O que se propõe nesse governo interino é um retrocesso de 50 anos, é lamentável.

Como a política repressiva interfere na prevenção e tratamento da dependência química?

É desastrosa, é desastrosa. Há experiências no mundo inteiro mostrando isso. Quando você tem uma política repressiva, não há espaço para fazer prevenção.

Por exemplo, se o tema fosse sexualidade e eu falasse a um grupo de adolescentes que todo mundo teria que casar virgem. Como é que vou falar de prevenção de AIDS e DST se eu já parti do pressuposto que todo mundo tem de casar virgem?

É o mesmo princípio: se eu falo que não pode usar droga proibida, só álcool, tabaco e café, como é que eu vou falar sobre o uso de maconha que não leve a prejuízos? É um contrasenso! Você não pode ser proibicionista e tratar a dependência com redução de danos usando a maconha.

As próprias famílias às vezes escondem que o filho é usuário por medo da repressão policial e não procuram ajuda. É possível fazer tratamento e prevenção de forma muito melhor em um clima de não-proibicionismo.

Um dos maiores exemplos disso é o tabaco: houve uma diminuição mundial, calamitosa, na proporção de fumantes do mundo, coisa que não teria sido possível se o tabaco fosse uma droga ilícita. Como é que se pode fazer campanha populacional maciça sobre um produto ilícito?

Beneficiários do programa Braços Abertos, em cerimônia com o prefeito Haddad para receber carteiras de trabalho assinadas | Foto: Fernando Pereira/SECOM/PMSP

Como você observou a atuação da polícia durante o programa Braços Abertos?

Então, esse é um dos pontos onde critico o Braços Abertos. Como eu estou lá só como assessor eu me dispus a dar um treinamento para as equipes que vão agir na rua. Fiz esse treinamento e quis incluir muito a GCM e a Polícia nesse treinamento, só que eles não foram.

Daí [a Polícia e a GCM] fazia um trabalho ‘atravessado’, atravessavam a proposta de redução de danos. Isso porque no mundo inteiro onde houve a aplicação desses projetos houve toda uma colaboração da polícia, da comunidade como um todo.

Aqui não: a polícia foi treinada para fazer a repressão, e eles não entendem nada de redução de danos. Isso sem mencionar a relação absolutamente pervertida que a polícia tem: a polícia está intimamente relacionada ao próprio tráfico. Então ao mesmo tempo a polícia é o fornecedor e o repressor, é uma coisa muito promíscua né?

Mas eu acho que isso não é culpa dos policiais, é culpa da política proibicionista, como era na lei seca americana.

Qual o limite entre a política sobre drogas enquanto questão de saúde e segurança?

Eu sou a favor da descriminalização de todas as drogas há 40 anos, porque você não pode criminalizar alguém que está usando um produto. Pode-se criminalizar uma ação contra outra pessoa. Se eu assalto alguém, agrido alguém, eu posso ser criminalizado, mas se eu uso um produto, seja álcool, maconha, cocaína, onde está a vítima?

Partindo do pressuposto de que a droga seja [uma ferramenta] de auto-agressão, eu acho que ela pode ser uma auto-agressão mas na maioria dos casos não é. A maioria dos usuários de álcool e maconha usam de forma hedonística, para obtenção de prazer.

Então a política sobre drogas tange exclusivamente à saúde e não deveria ser tratada como uma questão de segurança?

Acho que de forma nenhuma, você só pode pensar em repressão policial em caso de tráfico internacional.

Filipe Olivieri é jornalista e cronista pela Agência Democratize